A mosca do lado de dentro
— Você disse que tinha algo pra me contar.
— É algo importante. Tô melancólico há mais de uma semana por conta desse rolo todo.
Eu olhei pro meu amigo, que não olhava pra mim, só pro copo de chopp meio vazio na frente dele. Meio vazio, mesmo, porque ele não parecia muito otimista.
Três segundos de silêncio e eu perguntei:
— E o que tá te deixando assim?
— Problemas de relacionamento.
— O de sempre, então.
— É, o de sempre — ele disse, com uma voz mais grossa que o normal.
— E o que rolou dessa vez?
— Lembra da Andressa?
— Lembro.
Eu não lembrava quem era Andressa.
— A gente saiu, acho que foi nossa quarta vez. Fomos comer um lanche naquele lugar que tu levava tua ex direto, sabe?
Eu lembrei quem era Andressa.
— Eu não levava só minha ex, eu que te mostrei o lugar, rapá. Me dê os devidos créditos.
— Não foi, não. Eu que te levei porque ia rolar um cover de Ramones lá e eu queria ver.
É verdade. Eu odeio Ramones. O vocalista da banda cover era cabeludo, mas tinha entradas enormes. Toda vez que batia cabeça dava pra ver uns tufos de cabelo caindo contra a luz.
— Tá, tanto faz. E o que tem a Andressa e o lugar com cover do Ramones?
— Como te falei, fiquei com ela já no primeiro encontro. As coisas foram progredindo, saímos mais algumas vezes, e tava indo tudo certo, sabe? Até ontem, quando tudo descambou.
— Tá…
— O rolê foi muito massa. Daí fomos pra casa dela, transamos e ficamos o resto da noite de conchinha, pelados, conversando qualquer merda.
— Tá…
— Daí eu caguei tudo — ele disse, em tom de desesperança.
— Se tu não cometeu algum crime, então não cagou tanto assim.
— Foi um crime — ele disse, fazendo uma cara séria.
Eu arregalei os olhos, senti meu coração palpitar e minha mente congelar por alguns segundos, tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Meu amigo de infância é um… criminoso?
Ele tinha uma carinha de psicopata, mas até então era um cara normal. Se bem que psicopatas parecem pessoas normais e isso serve até pra eles conseguirem se aproximar das vítimas.
— Eu falei que AMO ELA!
— Puta que pariu, que susto — falei, suspirando.
Ele me olhou de canto de olho, confuso, mas continuou:
— E daí ela disse que a gente deveria ir com mais calma porque não tava sentindo o mesmo. Daí… — ele fala muito “daí”, igual criança — ela lembrou que já tivemos essa conversa antes e que tínhamos concordado que era pra ser algo casual.
— E daí? — perguntei.
— Daí que eu não tava vendo as coisas desse jeito. Achei que a parada tava indo pra uma relação mais séria e daí…
— Daí — peguei o trejeito dele, que bosta — tu se apaixonou e por isso cagou o rolê, é?
— Por aí.
Olhei sério pra ele, ele me olhou de volta e deu um sorriso envergonhado de quem tá se sentindo bobão. Talvez seja um bobão, mesmo.
— Já sei o que tu vai dizer — ele falou, como alguém que já tivesse nessa situação outras vezes.
— Sabe, né? É que não é a primeira vez que tu sai com alguém e…
Ele puxou o celular, olhou as notificações rapidinho e falou:
— Ela acabou de mandar mensagem. Boa, agora eu vou ficar agoniado pra responder.
— Acho melhor deixar pra responder depois.
— Melhor, né? — ele baixou o celular.
O celular vibrou mais algumas vezes. O rosto dele criou uma expressão de angústia que eu nunca tinha visto antes. Com a mão esquerda, ele apertou o pulso da mão direita como se estivesse literalmente se segurando pra não fazer algo.
— Você não toque nesse celular, rapaz.
Ele assentiu.
— Cê sofre de viés de confirmação, sabia?— eu disse
— Olha ele! Leu dois livros de psicologia, viu uns vídeos no YouTube e já tá se achando o professor Xavier, lendo mentes sem permissão. Você tá infringindo a LGPD, sabia?
Eu ri.
— Não, não. É que eu já passei por isso, só achei um nome bom pra resumir a parada. Basicamente, a gente começa a ver sinal onde não tem e isso alimenta uma narrativa na nossa cabeça que é baseado em nada.
— Tá, como assim? — ele perguntou.
— Em algum momento você se apaixonou e desejou que isso fosse correspondido. Isso fez você criar uma história na sua cabeça, do tipo “essa vai ser a mãe dos meus filhos”. É algo bem comum nesses rolos casuais meio… assimétricos?!
Fiquei brevemente confuso com o que eu disse. Ainda assim, continuei:
— Porque em vez de você “amar de longe”, você tá recebendo um carinho recíproco.
— Saudade de quando eu era pequeno.
— Porque não tinha que lidar com isso? — perguntei.
— É que eu era envergonhado demais pra falar com as gurias que eu gostava. Aí eu literalmente sofria calado.
— Err…. por aí, por aí.
Continuei sendo um palestrinha:
— Ela deu vários sinais de que não queria algo sério, mas você ignorou pois não condizia com a história na tua cabeça. Daí — de novo esse “daí” — você, por estar apaixonado, começa a tentar achar sinais de que ela também está apaixonada. E como você faz isso?
— Procurando evidências?
— Procurando evidências. Você se agarra à migalhas de amor achando que isso é sinal de amor recíproco. Porque na sua cabeça, ela está. Mas na cabeça dela, não.
Ele pegou o celular. Eu me meti:
— Tu não vai ler as mensagens dela, vai?
Ele me olhou no olho por um instante e falou:
— Calma… merda, abri a conversa e ela vai ver que eu li a mensagem. Foda-se, quero te mostrar uma coisa.
Ele começou a procurar uma mensagem no histórico da conversa:
—Aqui. O que tu acha disso?
Ele me mostrou o celular e eu li “Tava pensando em ver aquele Matrix 4, pelo trailer pareceu bom”.
— Tá, ela queria ver Matrix 4, que que tem? É um filme ruim, avisa ela.
— Não, cara, as mensagens ali em cima.
— “Queria ver um filminho hoje, de conchinha com você”. Ah, saquei.
Recostei na cadeira de madeira com logo da Skol, ajustando minha coluna que doía. Inspirei fundo:
— Me ajuda a te ajudar, bicho. Você achou que “ficar de conchinha” é o jeito dela mostrar que tá querendo avançar a relação e que isso “é um sinal” de que ela quer algo mais.
— E não é?
— Não.
— É uma conchinha, cara. Tu não faz isso com qualquer um.
— Uma vez dormi na mesma cama que um amigo meu, viradinho, bunda com bunda. Mas aí uma hora eu me virei e virou uma conchinha involuntária. Fui perceber quando acordei.
— Mas vocês não tinham nada? Não é aquele cara que tu se pegou na balada?
— História pra outro dia.
Ele deu uma risadinha e acenou com a cabeça como quem diz “ai ai”.
Nesse momento, eu pedi mais dois chopps. A garçonete sorriu pra nós e disse “obrigada”, franzindo a testa de um jeito que a pele da testa formou pequenas ondinhas de tecido epitelial.
— E esse sorriso, ein? — ele falou, baixinho, movendo as sobrancelhas pra cima e pra baixo.
Eu só ignorei e continuei:
— Você tentou adivinhar o que ela tava pensando quando te mandou isso, mas você adivinhou errado. Você que tentou ser o professor Xavier infrator da LGPD dessa vez.
Silêncio constrangedor:
— Esse é meu ponto: você interpretou como você quis, basicamente. Isso foi na… quarta, né? No final de semana anterior ela já não tinha te dito que não via uma relação séria entre vocês? A conchinha foi mais um tijolo no castelinho que você criou na sua cabeça.
— Castelinho tipo… ah, entendi… eu acho. Que metáfora ruim, Jesus. Entendi o que tu quis dizer, faz sentido.
— Não me entenda mal, já passei por isso também — eu disse, abandonando a metáfora do castelinho.
— Pô, mas isso nunca me aconteceu antes.
Fechei os olhos, suspirei e perguntei:
— E a Carol?
— Com ela foi diferente. No começo a gente…
— Não foi diferente — nem deixei ele terminar a frase — Você começou a se apegar nela, sendo que no Tinder tava explícito “Quero algo casual” e vocês mal conversavam durante a semana.
— Mas a gente nunca definiu que seria assim. Nunca definiu nada, na verdade.
— Esse é o problema, faltou traçar a linha da relação. Se você tá vendo que tá se envolvendo mais do que o normal, em algum momento vocês precisam conversar. E aqui eu não tô colocando a culpa toda em ti, porque ela também não puxou essa conversa.
— Real. Parecia que eu tentava adivinhar o que ela queria, e ela deve ter achado que sabia o que eu queria.
Ele ficou pensativo por um tempo. A garçonete voltou com os dois chopps, deixando nossa conversa em stand by por um momento. Ela sorriu novamente e foi atender outra mesa.
Meu amigo tentou sorrir de volta, mas ela não viu. Em seguida, ele voltou a falar:
— Teve aquela vez com a Helena que foi quase igual, mas ela que se apaixonou por mim. Lembro dela comentar que achou que eu queria algo sério, pois topei ir só nós dois em um chalé na serra e isso é um rolê de casal. Ela ainda voltou a insistir por algumas semanas, até que eu falei que não queria mais.
— Tô ligado. Esse lance de “rolê de casal” é uma coluna gigante nesse castelinho que ela montou.
— O foda é que às vezes você tem que tomar a decisão pelo outro, porque as pessoas não se ajudam. Eu não me ajudo.
Ele ficou reflexivo por alguns segundos até que eu tirei ele do transe:
— Aconteceu comigo quando saí com aquela enfermeira, lembra?
— Lembro.
Acho que ele não lembra:
— Ela me perguntou: “você tá saindo com outras pessoas?”. Eu interpretei isso como um tipo de ciúme por parte dela, como se ela quisesse saber se estava olhando pra outras pessoas e não só pra ela. Depois ela me disse que só perguntou aquilo porque queria que eu não me fechasse para outras pessoas, mesmo. Interpretei o contrário do que ela quis dizer.
— Que vacilo — ele disse.
— Pra variar, também não tivemos o famoso papo sobre o que queríamos. Aí ficou um jogo de adivinhação, tipo uma partida de xadrez em que um tenta antever os movimentos do outro.
— Olha, uma metáfora um pouco melhor. Continue treinando que daqui pouco você vai escrever belas poesias.
Encarei ele um pouco, ignorei e continuei:
— Mas é o que dizem: errar é humano, persistir no erro é burrice.
— Sério que tu meteu essa frase de LinkedIn sem ser piada? Caralho.
— É sabedoria popular. Se chama “sabedoria” por um motivo.
— Aham — ele falou, zombando de mim.
Ele se distraiu com o barulho da moto que passou perto da nossa mesa. Ficou fitando o nada um pouco enquanto eu olhava os banners de promoção da loja de móveis. Tudo caro.
Ele cortou o silêncio:
— Às vezes eu me sinto como uma mosca presa do lado de dentro da janela.
— Oi?
— Tipo, eu consigo ver o lado de fora, que é onde eu quero estar. Eu quero um relacionamento sério. Eu tenho certeza que quero um relacionamento sério. Porém parece que tem uma barreira invisível, um vidro, no qual eu fico batendo repetidas vezes sem entender o que está acontecendo. E daí ou eu morro ali, cometendo o mesmo erro infinitas vezes, ou alguma alma caridosa abre a janela pra eu sair.
— Acho que entendi. você está esperando alguém resolver o problema pra ti, então?
— Talvez… Acho que sim. Tô quase desistindo por cansaço, mesmo.
— Você sabia que a mosca enxerga 360º. Isso significa que ela pode olhar para vários outros lados, só não conseguiu ver outros caminhos.
Ele me fitou com um olhar de confusão:
— Como assim?
— Tô falando que a mosca é burra, burro. Ela enxerga outros lados, mas prefere ficar insistindo no que não dá certo.
— Onde você aprendeu isso? — ele perguntou.
— Vi na Fatos Desconhecidos. É, não me orgulho disso.
Ambos rimos. Continuei:
— Mas enfim, o que eu quero dizer é que você deveria tentar outra saída.
— É, eu não quero ser uma mosca burra. Elas vivem pouco e eu quero ter filhos, também. De preferência que não vivam chafurdando no cocô, também.
— Depois você vem falar que minhas analogias são um lixo. Meu castelinho dá uma surra na sua mosca.
Rimos mais um pouco. A garçonete veio até a mesa e perguntou:
— Mais alguma coisa pra vocês, rapazes?
— Só a conta. E se possível um desconto, também — disse meu amigo, sorrindo igual tiozão.
Ela riu, igual um trabalhador rindo das piadas do chefe pra não perder o emprego.
— Já trago pros senhores — ela disse, tirando nossas canecas rapidamente.
Meu amigo ficou me encarando um tempo, até que eu perguntei:
— Que que foi?
— Acho que ela gostou de mim.
—Meu consagrado, você tá batendo na janela de novo.